O princípio da intenção das partes e o contrato de seguro
Breve análise sobre os deveres fundamentais das partes
“O mundo moderno não distinguirá entre questões de opinião e questões de princípio; e acabará por tratar a ambos como meras questões de gosto” – G.K. Chesterton
De fato, vivemos em um tempo confuso, moral e conceitualmente. E essa confusão também acaba chegando no Direito — ou partindo dele.
Todos sabemos de sua natureza dialética e da pluralidade de opiniões lhe é comum. No entanto, do fato de se admitirem diferentes abordagens em torno de um mesmo ponto, não se pode concluir que todas sejam igualmente boas. Nem garante a cada qual uma parcela razoável de verdade. E quando as posições não levam em conta uma base principiológica firme, a situação se agrava e o Direito sai esvaziado.
No Direito atual, existe uma tendência particularmente perigosa: o ativismo ideológico disfarçado de abordagem social. Muita gente bem-intencionada interpreta e aplica o Direito com anseio de justiça social. Aí reside o problema.
A história é bastante pródiga em exibir que alguns dos seus maiores desastres foram produzidos em nome da justiça social. Ou de sua deformação conceitual. Dentro desse contexto surgem os que passam a demonizar os princípios por enxergar neles apenas um espaço para ativismo.
Mas não concordamos com isso.
Existe o risco do uso ideológico dos princípios? Sem dúvida. Mas o risco não é maior que os benefícios que nascem de sua leitura correta. O princípio não se opõe ao texto legal expresso, mas lhe confere maior riqueza no exercício de suas finalidades. Isso porque permite enxergar melhor a relação norma-fato. Quando a inteligência se funda no princípio verdadeiro, busca-se algo mais do que uma impressão fugidia e excessivamente literal das letras legais, uma espécie de miopia da regra, sendo possível extrair a própria razão de ser que a informa e a completa.
Não há real contradição entre a valorização do princípio e o temor pelo ativismo. Compreensível pensar que o princípio pode permitir a elasticidade na interpretação da regra legal, porém não é só disso que se trata.
O princípio – insistimos, corretamente observado – confere maior segurança jurídica quando o Direito é posto em exercício. A regra tem de estar fundada, com os dois pés fincados no terreno dos valores. Quando dele se distancia na gênese, deve corrigi-la o confronto ou a harmonização de ambos. Através do princípio é possível ver o Direito de forma mais ampla e profunda; vai-se além da silhueta do vazio e das aparências da superfície, à busca da Verdade, que é irmã da Justiça, não do arremedo que em seu nome erigem, do casuísmo injustificado e voluntarista, e sim da autêntica Justiça, que do Direito é senhora e mestra.
Neste sentido queremos destacar um único princípio, vetor dos contratos em geral: o princípio da intenção das partes (busca da comum intenção das partes) ou da intencionalidade.
Seu foco, como o nome sugere, recai sobre os objetivos que buscam as partes ao formarem o negócio jurídico. Esse princípio não se limita ao plano das formas cujo abstratismo, em certos casos, as torna excessivamente etéreas, quase inimagináveis; avança no campo das substâncias vivas e concretas, revelando-se de especial importância diante de problemas que nascem das relações em torno do contrato.
A intenção sempre há de ser investigada para a solução das controvérsias e a manutenção do equilíbrio entre as partes, de sua paridade de forças. Remete-se à gênese do contrato, em uma aferição posterior, quando as partes, diante do conflito, de uma controvérsia ou mesmo de um litígio, precisam rememorar os propósitos do início. Um princípio que, embora caia no terreno mais propriamente jurídico, é dos bons frutos que pendem da árvore filosófica.
Para melhor entender sua aplicação no Direito das Obrigações, é interessante olhar o conceito. Intencionalidade é parte integrante do conhecimento. A pergunta que se faz, porém, é: em que ponto do conhecimento ela se nos apresenta?
Encontramos uma resposta, que ora reproduzimos integralmente1:
O processo de conhecimento tem sido objeto de estudo da epistemologia. Alguns pensadores como Tomás de Aquino refletem sobre a intencionalidade como uma das características essenciais do conhecimento. As imagens mentais diferentemente do universo material são imateriais. O significado destes conceitos mentais tem um seu significado em relação aos objetos materiais.
Deste modo, o conhecimento deve ser analisado de forma constante sua conexão com o mundo, uma vez que o ser humano está integrado ao meio. Assim, existe certo grau de identificação entre a ideia e o objeto. Tomás de Aquino explica que o conhecimento apreende um elemento através do processo de abstração. O elemento, ou seja, as coisas têm por sua vez uma composição de matéria e forma: a essência é a forma que potencializa o ato de ser.
A partir deste ponto de vista, na teoria descrita por Tomás de Aquino, o conhecimento humano compreende a forma das coisas (a forma é universal), mas não da matéria. A forma é a que concretiza a matéria. O homem é um ser universal que possui capacidades (sentidos) nas quais pode observar o mundo que o rodeia e obter informação. O conhecimento recebe a informação procedente de cada um dos sentidos.
O conhecimento é intencional, ou seja, a essência do conhecimento é alcançar a verdade da mesma forma que a essência da vontade é alcançar o bem. Desta maneira, a busca pela verdade leva o homem a refletir sobre si mesmo e sobre o mundo que o rodeia em uma chamada realização pessoal. Na teoria de Tomás de Aquino, a relação entre o conhecimento e objeto é constante.
Entretanto, com a chegada do racionalismo cartesiano próprio de Descartes, esta noção mudou de forma notável e focou sua atenção na consciência como ficou refletido na mensagem: “Penso, logo existo”.
Então a intencionalidade necessária para o conhecimento, a busca incessante do saber, é a mão voluntária que empunha a espada da verdade. Ao migrar para o campo das obrigações contratuais, temos por certo que a verdade real há de prevalecer sobre a formal, em que pese a invulgar expressividade desta. Socorrendo-nos novamente da filosofia, podemos extrair de Kant uma reflexão valiosa .
Princípio da intencionalidade (Kant)
Segundo Kant, o princípio regulador geral que o juízo reflectivo estabelece para si próprio é a intenção da Natureza.
Embora não possamos provar que a Natureza está intencionalmente organizada, devemos sistematizar o nosso conhecimento empírico vendo a Natureza como se assim fosse organizada. Segundo Kant, a sistematização do conhecimento empírico apenas é possível se agirmos com base no pressuposto de que uma compreensão, para além da nossa (1), nos forneceu leis empíricas organizadas de modo a que nos seja possível uma experiência unificada.
Em si mesmo, o Princípio da Intenção da Natureza parece dizer-nos que se pretendermos construir uma subordinação sistemática das leis empíricas, devemos excluir conjuntos de leis incongruentes como sendo incompatíveis com uma organização intencional (2) da Natureza.
PRESSUPOSTOS DO PRINCÍPIO DA INTENCIONALIDADE
- A Natureza escolhe o caminho mais curto (lex parsimoniae).
- A Natureza não dá saltos (lex continui in natura).
- Existe na Natureza apenas um pequeno número de tipos de interacção causal.
- Há, na Natureza, uma subordinação de espécies e de géneros, entendível por nós.
- É possível integrar as espécies em géneros progressivamente mais elevados.
Adenda:
Kant ficou muito impressionado pelo princípio de Maupertuis da “menor acção”, princípio pelo qual se podiam derivar, mediante uma interpretação adequada do termo “acção”, leis regendo o equilíbrio estático, as colisões e a refracção.
O princípio da menor acção, tal como o princípio do menor esforço de Leibniz, surgiu para explicar o motivo por que essas leis individuais são obedecidas.
Maupertuis interpretou esse princípio como a evidência de uma acção deliberada do Criador (Deus). Kant, todavia, atribuiu-lhe apenas o estatuto de princípio regulador.
Notas
1. por exemplo, Deus
2. por exemplo, mediante uma intenção do Criador da Natureza
Kant trata do princípio da intencionalidade em relação à Natureza, mas sua lição se encaixa bem no que aqui desejamos estudar: o Direito das Obrigações.
Ante o comentário reproduzido acima, lançamos especiais luzes nesta parte: “Princípio da Intenção da Natureza parece dizer-nos que se pretendermos construir uma subordinação sistemática das leis empíricas, devemos excluir conjuntos de leis incongruentes como sendo incompatíveis com uma organização intencional (2) da Natureza”.
Justificamos.
Tomemos o contrato por Natureza e reconheçamos o desejo de ver construída a necessária subordinação ao seu conteúdo, suas normas. Então, além de nos ocuparmos com o estudo dos vícios, das cláusulas eventualmente abusivas, dos erros, temos que excluir tudo o que não faz parte da sua essência, da comum intenção das partes, e nos concentrar naquilo que é fundamental, sua condição particular dentro do Direito.
O Direito é a Natureza do mundo contratual e a organização intencional é o princípio da busca da comum intenção das partes, o que, em primeira e última análise, nada mais é do que o fundamento de validade de um contrato.
Daí o destaque que damos ao princípio e o quanto recomendamos seu estudo. Dizer mais sobre o seu caráter geral não seria muito. Para os propósitos modesto deste comentário, porém, parece-nos bastar. O objetivo é entender como o princípio pode e deve ser especificamente considerado no contrato de seguro. Quais são as intenções das partes contratante de um determinado seguro?
A intenção do segurado (não raro, também beneficiário) é a de receber a indenização caso o risco contemplado na apólice ocorra. Em outras palavras: recompor o patrimônio perturbado.
Já a intenção da seguradora é pagar a indenização em caso de ocorrência do risco previsto na apólice, desde que não haja nenhuma irregularidade apurada durante a regulação do sinistro. E, depois de fazê-lo, tem a justa possibilidade de buscar o ressarcimento em regresso contra quem de direito, se o caso permitir.
Atenhamo-nos ao teor da intenção da seguradora, por oportuno.
Ao contrário do que se pensa por aí, inclusive no mundo jurídico, seguradoras não reclamam de pagar indenizações: apenas querem pagar o que é justo, devido, correto, acordado e, portanto, previsível. Esse cuidado mostra-se bastante devido, rodeado de escrúpulos perfeitamente justificados, diante do dever que lhe advém da relação com o colégio de segurados.
Em razão do princípio do mutualismo, fundamental para a própria existência do contrato de seguro, as seguradoras têm o ônus de preservar os direitos e interesses de todos os seus segurados. Quando pagam indenizações de seguros aos segurados e/ou beneficiários, todos os seus segurados, de algum modo, também participam do pagamento.
Por isso que já nos manifestamos, em oportunidades anteriores, no sentido de que o ressarcimento em regresso não surge apenas como direito da seguradora (art. 786 do Código Civil e Súmula 188 do Supremo Tribunal Federal), mas também como dever.
Buscar contra o causador do dano o ressarcimento que motivou o pagamento da indenização não é algo de que a seguradora possa abrir mão (ou ao menos não deve), porque ali está em jogo a própria saúde econômico-financeira do mútuo e do negócio de seguro.
Lembramos do ensinamento do renomado jurista espanhol Eugenio Llamas Pombo, professor catedrático de Direito Civil da Universidade de Salamanca que o disse, em uma das aulas do 45o Curso de pós-graduação em Direito, especialização em Direito do Seguro, mais ou menos com estas palavras: “A seguradora não se incomoda em pagar indenização alguma. Ela apenas quer saber quanto, qual o limite máximo do seu dever, e ter certeza absoluta que será correto, devido”.
E isso é verdade. Por outros motivos dos quais não convém aqui tratar, existe um enorme ranço ideológico contra o mercado segurador, que leva muita gente a acreditar injustamente que ele não cumpre os deveres com que se compromete, sempre à cata de filigranas jurídicas para não pagar indenizações.
Eis um terrível erro de percepção acerca do negócio de seguro. Seguradoras pagam bem e pagam muito. Sempre achamos interessante lembrar que, a cada pedido de indenização negado, uns cem outros foram naturalmente aceitos e integralmente pagos.
Muito provavelmente o mercado de seguros seja o que mais honra deveres contratuais e o que mais endereça benefícios não só aos seus players diretos, os segurados, mas também à sociedade em seu todo, ainda que de forma reflexa.
Então é certo dizer que as seguradoras buscam cumprir suas intenções nos contratos de seguro, respeitando os direitos dos segurados não só em homenagem aos princípios da boa-fé objetiva e da função social das obrigações, mas porque pagar indenizações é da índole do seu negócio. É para isso afinal que existem.
Ocorre que só podem pagá-las quando efetivamente se deparam, no mundo fático, com a união do conteúdo da apólice e do sinistro real. Isso porque, além de deverem respeito aos segurados, as seguradoras estão no negócio que é um dos mais direta e imediatamente regulados por órgãos públicos em todo o mundo.
Errada é a ideia de que tentam se esquivar de indenizações. É praticamente o oposto. Muitas vezes as seguradoras tentam indenizar o segurado mesmo diante de circunstâncias que possivelmente dificultem o pagamento.
Claro, nem sempre estão certas quando as negam. Também ocorrem equívocos de avaliações. Todavia, certas ou erradas, agem em plena boa-fé, apenas acreditando que o caso não se sujeitava às condições de pagamento que a apólice exigia.
É da índole do seu negócio pagar indenizações; esta é sua missão institucional, para não dizer social. O que deseja a seguradora é ter certeza de que o pagamento é devido, correto, contratual, legal, justo. Por isso, ao se tratar de uma indenização negada, é imperioso investigar o princípio da busca da comum intenção das partes para entender melhor a dinâmica do caso.
Se a intenção comum é o cumprimento dos deveres e obrigações do contrato, quer parecer correto dizer que o segurado tem que efetivamente fazer o que lhe cabe.
Certo, e o que isso significa na prática?
Significa que ele tem que ir muito além do pagamento do prêmio, a contraprestação imediata da expectativa de cobertura. Deve ele: 1) agir com boa-fé o tempo todo; 2) transparência absoluta nas informações, incluindo as novidades; 3) não agravar o risco; 4) fornecer todos os documentos solicitados pelo segurador; e 5) não prejudicar de modo algum o direito de regresso do segurador contra o causador do dano.
Podem existir outros deveres, específicos para cada modalidade de seguro, mas esses são os básicos, os comuns, que não podem ser ignorados.
Quando se busca a intenção comum das partes, busca-se, no contrato de seguro, tudo o que permite a seguradora pagar com tranquilidade e ordem uma indenização e, sendo o caso, exercer o futuro ressarcimento em regresso contra quem de direito.
Respeitá-lo há de ser intenção perpétua do segurado, condição primaz para receber a indenização. Se os deveres em destaque não compuserem o rol de intenções do segurado, a negativa de pagamento é o seu desdobramento regular.
A seguradora poderá negar a indenização amparada no contrato de seguro e neste princípio formidável, valendo-se da famosa figura jurídica da exceção pelo contrato não
cumprido, que basicamente consiste em dizer que aquele que descumpre o contrato não pode exigir do outro que o cumpra.
Em verdade, são coisas simples, mas que precisam ser repetidas o tempo todo, a fim de evitar que ideias e conceitos errados se propaguem, transformando-se em antipatias ideológicas quase que inconscientes, comuns nos embates de Direito do Seguro.
Em todo contrato, na esteira da boa-fé objetiva, o princípio vetor da intencionalidade ou da comum intenção das partes há de prevalecer e ser levado em consideração diante de eventuais conflitos.
Evidentemente que a investigação deste princípio não é plena — nem poderia ser. Mas também não pode ser descuidada. O princípio existe também como obstáculo ao casuísmo, sendo legítimo supor que nenhum segurado pode atentar contra o contrato, agravar o risco ou de alguma forma prejudicar a seguradora.
Por isso é importante que o comportamento integral das partes seja direcionado pela busca do aperfeiçoamento regular de seus deveres; todos, fielmente. Ao tratar da importância do comportamento integral de los contratantes para la búsqueda de la intención de las partes, o jurista colombiano Carlos Ignácio Jaramillo J. disse com muita propriedade:
“Por último, acercándonos a la culminación de este principio de oro, debemos acotar que em la búsqueda de la intención de las partes, el intérprete, quien para ello goza de relativa libertad – que no libertinaje -, está facultado para escrutar el comportamiento inter-partes (plenitude comportamental), en orden a parsale revista em diversos momentos capitales: antes, durante y después de la celebración del contrato, como quiera que, por regla, nada refleja mejor esa intención que la conducta que, espontáneamente, los contratante despliegan, sin duda una espécie de fiable brújula hermenêutica, según ya se anoto”.
Concluindo: o princípio da intencionalidade deve influenciar a análise de todo e qualquer caso de conflito de interesses entre as partes do contrato de seguro, a fim de se saber o quanto cada uma se esforçou sinceramente para cumprir com as intenções originais, na comunhão do que nada mais é senão a satisfação do negócio jurídico.
PAULO HENRIQUE CREMONEZE
Advogado, Especialista em Direito do Seguro e em Contratos e Danos pela Universidade de Salamanca (Espanha), Mestre em Direito Internacional Privado pela Universidade Católica de Santos, acadêmico da Academia Brasileira de Seguros e Previdência, diretor jurídico do Clube Internacional de Seguros de Transportes, membro efetivo da AIDA – Associação Internacional de Direito de Seguro, do IASP – Instituto dos Advogados de São Paulo e da IUS CIVILE SALMANTICENSE (Universidade de Salamanca), presidente do IDT – Instituto de Direito dos Transportes, professor convidado da ENS – Escola Nacional de Seguros, associado (conselheiro) da Sociedade Visconde de São Leopoldo (entidade mantenedora da Universidade Católica de Santos), autor de livros de Direito do Seguro, Direito Marítimo e Direito dos Transportes, pós-graduado em Formação Teológica pela Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção (Ipiranga), hoje vinculada à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Patrono do Tribunal Eclesiástico da Diocese de Santos. Laureado pela OAB- SANTOS pelo exercício ético e exemplar da advocacia.
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